A questão do tema de internação compulsória vem sendo muito discutida
nas mídias escrita e falada de todo o País, em razão das recentes
iniciativas dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro em relação
àqueles que buscam ajuda. Em São Paulo, foi assinado um termo de
cooperação técnica, pelo qual se criou uma força-tarefa formada por
profissionais de saúde, assistentes sociais, juízes, promotores de
justiça, defensores e OAB, sediada no Centro de Referência de Álcool,
Tabaco e Outras Drogas (Cratod).
A dependência química é um dos fenômenos de mais difícil
resolução da humanidade. Se de um lado da moeda existe a droga, do outro
estão a melhoria do sistema de ensino, o fortalecimento do papel
familiar, a diminuição da pobreza, a inserção do dependente em
atividades esportivas, lazer, trabalho, habitação, justiça e outros
fatores. O tema deve ser discutido na perspectiva biopsicossocial; o
tráfico, o fácil acesso às drogas, o desemprego e a violência pedem
intervenções mais amplas e em diversas áreas.
A dependência química acarreta ou aflora inúmeras consequências
negativas ao corpo humano, inclusive as chamadas comorbidades (doenças
psiquiátricas associadas), como psicose, paranoia, esquizofrenia,
manias, bipolaridade, entre outras. A consequência mais notória é a
agressão ao sistema neurológico, provocando problemas cognitivos e, em
alguns casos, oscilação de humor.
"HÁ POUCO TEMPO, O
ISOLAMENTO DO DOENTE MENTAL EM MANICÔMIOS ERA A REGRA, AFASTANDO O
PROBLEMA DOS OLHOS DA SOCIEDADE. COM A LUTA ANTIMANICOMIAL E COM O
PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE, A INTERNAÇÃO PASSOU A SER
EXCEÇÃO."
USUÁRIOS
Quando a situação fática dos mais de 2 milhões de
usuários apresenta um cenário degradado e insustentável, lançados na
sarjeta à própria sorte, medidas como a internação compulsória ou
involuntária podem ser plenamente adotadas dentro de um Estado de
Direito em que todos são iguais perante a lei, garantidos o direito à
vida e à liberdade. A privação da liberdade de ir e vir faz-se essencial
para que se vislumbre alguma possibilidade de devolver dignidade a
alguns dependentes químicos, inconscientes e largados à sua própria
sorte nas ruas de muitas cidades do País.
Não há que se falar em ofensa ao princípio da dignidade humana,
quando nada resta de dignidade à situação dessas pessoas. Não há que se
falar em medida higienista – um dos pilares sustentados pelos críticos
da política de internação à força –, quando direitos como a vida, a
saúde e a dignidade são diuturnamente aviltados fundamentos
constitucionais para que o Estado possa tomar medidas que protejam os
cidadãos dependentes químicos.
Deve-se, então, ser a favor da internação compulsória, certo?
Depende. O debate não deve ser norteado apenas no campo teórico. Somente
diante do caso concreto, excepcionalmente e como último recurso, a
internação será indicada como uma etapa necessária do processo de
reabilitação do adicto.
LEGISLAÇÃO
Há pouco tempo, o isolamento do doente mental em
manicômios era a regra, afastando o problema dos olhos da sociedade. Com
a luta antimanicomial e com o processo de humanização do sistema de
saúde, a internação passou a ser exceção. A regra é possibilitar o
tratamento multidisciplinar e a reintegração do usuário de modo
inclusivo em uma Rede de Atenção Psicossocial (articulada pelos CAPS),
estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.
A Lei 10.216/2001 dispõe sobre as modalidades de internação
(voluntária, involuntária e compulsória) e em todas há necessidade de
prévia avaliação multidisciplinar e um laudo médico que justifique a
internação. No entanto, mesmo entre os psiquiatras e os profissionais de
saúde, é grande a controvérsia sobre quando deve ou não ocorrer a
internação à força. Como regra geral, argumenta-se que ela somente é
cabível quando se provar que os recursos extra-hospitalares se mostraram
insuficientes, ou quando apresente iminente risco à vida do dependente
ou de terceiro (como, por exemplo, risco de suicídio, abortamento,
portador de esquizofrenia ou outra doença psiquiátrica grave).
Entretanto, mesmo aos favoráveis à medida extrema, uma questão ainda mais complexa surge. A internação compulsória é eficaz?
Os profissionais da saúde possuem a árdua tarefa de provocar
uma reflexão no dependente. Se o paciente não estiver disposto ou
“convencido” a mudar, qualquer tentativa de auxílio estará fadada ao
insucesso. Dessa forma, por meio de técnicas e de uma abordagem
multidisciplinar, eles buscam aproximação com o dependente, para a
construção conjunta de um objetivo de vida. O norte não é o de parar de
usar drogas, mas o de (re)construir sua identidade e seu círculo de
referências (familiar, social, profissional), resgatando suas
habilidades e qualidades positivas. A interrupção do uso de drogas é uma
consequência da reflexão e da apropriação desses valores.
CONTEXTO
Portanto, a internação por si só não faz milagres.
Ela garante a não utilização de drogas durante algum tempo. Alguém que
quer perder certo peso pode optar por uma reeducação alimentar e um novo
modo de vida saudável, ou pode simplesmente “internar-se” em um spa: no
primeiro dia de liberdade, voltará imediatamente a comer comidas
extremamente gordurosas, com excesso de sódio, e adotará todos os maus
hábitos anteriores. Com a internação, dá-se o mesmo: trata-se de uma
“UTI” durante a qual será traçado o plano terapêutico individual do
paciente e se buscará sua reflexão.
LEGISLAÇÃO
A Lei Federal 10.216/2001 regulamentou as mudanças
para a Saúde Mental no Brasil. A principal alteração foi a implantação
de uma rede de atenção com equipamentos comunitários, os chamados
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). “Esta lei é o Estado
reconhecendo que não se pode isolar um problema achando que ele será
resolvido. A loucura não deve ser escondida porque não é um problema”,
explica o psicólogo Bruno Jardini Mader, conselheiro do Conselho
Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR). |
Contudo, os cuidados não recaem somente no paciente, sendo sua
família um elo fundamental em seu processo de reabilitação. Na
dependência, a família também adoece e seus membros passam a ter
diversos mecanismos de defesa (justificativas no meio social,
negação/minimização da dependência, entre outros). Sem saber, alguns
familiares passam a atuar como facilitadores, pois suas personalidades e
características se potencializam diante dos danos causados pela doença.
Por exemplo, aquele que possui o papel do herói, sempre faz tudo e
resolve os problemas de todos, não percebe que está facilitando o
agravamento da dependência ao pagar as contas e resolver determinadas
pendências do dependente.
Há a necessidade também de se agregar outros recursos de
tratamento, como, por exemplo, as comunidades terapêuticas, mas cuja
falta de regulamentação e de fiscalização dessa atividade ocasiona a
abertura de alguns locais com natureza de verdadeiro presídio, sem as
mais básicas regras de saúde e higiene. Não há uma regulamentação para
um trabalho em rede com os serviços de saúde e de reinserção
socioassistencial, em um sistema de referência e contrarreferência,
justamente uma medida imprescindível se considerarmos que muitos
dependentes sofrem de comorbidades e, nas comunidades, não há recursos
médicos como regra geral. As entidades de autoajuda (AA, NA, Pastoral da
Sobriedade, Amor Exigente e outras) poderiam ser outro excelente
recurso para usuários e familiares, que prestam um valioso serviço para
sua reflexão e seu comprometimento para a reorganização de sua vida.
A almejada reflexão não se limita ao usuário; cabe também à
sociedade em geral e ao Poder Público. Quanto ao nosso sistema de
justiça, por exemplo, usuários de drogas figuram em milhares de
processos cíveis e criminais em todo o País, sem que lhe seja
possibilitado um desburocratizado tratamento em rede ou sua prevenção.
Todos os problemas sociais deságuam na Justiça, mas nosso processo cível
e criminal é pensado para resolver somente o litígio em si, e não a sua
verdadeira causa (no caso, a dependência). É necessário somar esforços
conjuntos para, por exemplo, evitar que um usuário inicial se transforme
em um dependente.
A sociedade, por outro lado, também possui mais semelhanças com
dependentes químicos do que podemos imaginar. Após a metade do século
20, com a produção em massa, os recursos tecnológicos e a
potencialização do consumo, nosso conceito de felicidade passou a ser a
pura satisfação de nossas vontades. Desaprendemos o nosso pensamento
comunitário para nos dedicarmos a todo custo à conquista de nossas
vontades (sejam elas bens de consumo ou não). O dependente químico nada
mais é do que a expressão máxima deste conceito de felicidade: “preciso
ser feliz a todo custo, não posso deixar de ter tudo, não posso passar
vontade (…)”.
A saúde integral é dever do Estado e, nesse contexto, não há
situação da qual ele possa se furtar. A dependência de drogas é um
problema que atinge todos nós, direta ou indiretamente. Chegamos a um
estado de alerta no qual apenas criticar, cruzar os braços ou fechar os
olhos já não é mais possível. Somente com ação e com um trabalho
conjunto e integrado corrigiremos os rumos da sociedade.
* SANDRA FRANCO é sócia-diretora da Sfranco
Consultoria Jurídica em Direito Médico e da Saúde do Vale do Paraíba
(SP), especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da
Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da
OAB/SP e presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde
(ABDMS).