sexta-feira, 19 de julho de 2013

Teoria e Técnica cognitiva aplicada à Dependência Química




 A TC é uma abordagem estruturada ou semiestruturada, diretiva, ativa e de prazo limitado. Ela se fundamenta na racionalidade teórica de que o afeto e o comportamento de um indivíduo são, em grande parte, determinados pelo modo como ele estrutura o mundo. Neste sentido, mais importante do que a situação real, é a avaliação que o indivíduo faz a respeito dela. Uma mesma situação pode, portanto, desencadear diferentes emoções (tristeza, raiva, ansiedade, etc). Por exemplo, imaginemos um indivíduo que chega à garagem do seu prédio e percebe que esqueceu as chaves do carro no apartamento. Ele pode avaliar esta situação de várias maneiras. Exemplifiquemos duas: 1) ao perceber que está sem as chaves, ele pode pensar que é uma pessoa "azarada" e que seu dia começara ruim; a emoção que acompanha essa avaliação é tristeza e desânimo. Com este sentimento, seu desempenho no trabalho tende a ser baixo. 2) ele pode, ao contrário, pensar que, se subir ao apartamento para pegar as chaves, vai se atrasar. A emoção que ocorre neste caso é ansiedade. Ele chega ao trabalho tão ansioso que não consegue seguir a programação do dia: seu desempenho também cai.
      O objetivo da TC é reestruturar as cognições disfuncionais e dar flexibilidade cognitiva no momento de avaliar situações específicas. Como a exemplificada acima. A TC visa à resolução de problemas focais, objetivando, em ultima análise, dotar o paciente de estratégias cognitivas para perceber e responder ao real de forma funcional.
      A TC contrasta com a BT por dar maior ênfase às experiências internas (pensamentos, sentimentos, desejos). O terapeuta cognitivo formula as ideias e crenças disfuncionais do paciente sobre si, sobre suas experiências e sobre seu futuro em hipóteses e, então, testa a validade dessas hipóteses de uma forma objetiva e sistemática.
Os pilares conceituais da prática de TC são os seguintes:

Esquemas e Crenças Básicas 

    Os Esquemas são estruturas psíquicas que contêm avaliações firmemente estabelecidas. O Esquema, se traduzido em palavras, forma criações hipotéticas chamadas de Crenças Básicas. As Crenças Básicas, quando disfuncionais, caracterizam-se por serem irracionais, supergeneralizadas e rígidas. Levam a sofrimento psíquico e comportamentos mal adaptados, além de impedirem a realização de metas. O Quadro I mostra alguns exemplos de Esquemas Cognitivos disfuncionais e suas respectivas Crenças Básicas. 


Quadro I – Exemplos de esquemas Cognitivos disfuncionais e suas Crenças Básicas      


Esquema – Disnfuncional
Crença Basica
Incapacidade (nível primário)
“sou incapaz fisicamente, intelectualmente, profissionalmente, etc.”
Inadequação (nível primário)
“sou feio, chato, faço tudo errado, me visto mal, não sei falar, não sei me vestir de maneira correta, etc.”
Baixa Estima (nível primário)
“Não sou uma pessoa que pode ser amada, não sou amado, sou rejeitado pelos outros”
Vulnerabilidade (nível primário)
“o mundo real é ameaçador e eu não tenho recursos para lidar com isso ou confrontá-lo”



    Segundo Beck, as Crenças Básicas disfuncionais podem ser classificadas em dois tipos: 1) Crenças de Desamparo e 2) Crenças de "Não ser querido". O Quadro II exemplifica as crenças mais frequentes na clínica e as classifica nestas duas categorias.


Quadro II – Exemplos de Crenças Centrais Disfuncionais segundo categoria: de Desamparo e de “Não ser Querido”.


Crenças Centrais de Desamparo
Crenças Centrais de “Não ser querido”
- Não tenho saída
- Não tenho valor
- Eu sou inadequado
- Não sou alguém que possa ser amado
- Eu sou Fraco e desamparado
- Sou indesejado
- Eu sou um fracasso
- Não sou atraente
- Eu sou pior do que todas as        outras pessoas (não tenho sorte)
- Sou mau, portanto posso ser abandonado
- Eu sou inadequado
- Eu realmente estou condenado a ficar sozinho
- Eu sou ineficiente

- Eu sou imcopetente

- Eu nunca vou conquistar ninguém

- As pessoas não se importam comigo



Pensamentos automáticos


      As Crenças Centrais Básicas são avaliações genéricas sobre si mesmo, sobre o outro e sobre a relação com o mundo que o cerca. Na maioria das vezes, tais crenças não são conhecidas e claras para o indivíduo (são inconsciente), mas, sob determinadas circunstâncias, influenciam a percepção sobre as coisas e é expressa como pensamento automático, específico a uma situação. Os pensamentos automáticos derivam de um "erro" cognitivo e têm íntima relação com as crenças. O Quadro III exemplifica alguns erros cognitivos e pensamentos a eles associados.


Quadro III – Erros Cognitivos e seus correspondentes pensamentos automáticos.


Erros Cognitivos
Pensamentos (Cognições)
“Catastrofizar”
“O pior certamente ocorrerá e não há mais o que fazer
“Tudo ou nada”
“Já que não conseguirei fazer esse trabalho com perfeição, não vou nem começar
“Generalização”
  “Eu nunca faço nada certo mesmo”
“Abstração Seletiva”
“Hoje o meu dia foi problema”
“Julgamentos Globais”
“Cometi outro erro. Sou inútil”

Estratégia compensatória 


    São comportamentos que visam aliviar ou anular os pensamentos automáticos e emoções negativas. Por exemplo, imaginemos um paciente músico, diante de uma situação na qual vai se apresentar publicamente. Ocorre-lhe um pensamento: "Vou errar". Lembrando que o pensamento automático é uma constatação inflexível, o paciente sente-se triste, com medo e ansioso. Ele, então, faz uma suposição: "se eu beber conseguirei ficar menos ansioso e poderei me apresentar". Pede uma bebida alcoólica e bebe. O comportamento de busca e ingestão do álcool é um exemplo de Estratégia Compensatória.
Poderíamos nos perguntar: por que esse conjunto de cognições ocorreu? Uma explicação possível seria a seguinte: o fato de ser exposto a essa situação ativou, neste paciente, um Esquema disfuncional que, em palavras, seria: "Sou inadequado"; "Sou incapaz". A partir desta ativação, desencadeou-se todo o processo cognitivo descrito.
O terapeuta cognitivo chega a hipóteses semelhantes à descrita acima ao longo do processo terapêutico. Ele vai testando, reconstruindo suas hipóteses e se aproximando da Estrutura Cognitiva do paciente. Essa construção da hipótese cognitiva global é chamada de Conceituação Cognitiva, cujo conceito segue abaixo.


Conceituação Cognitiva


     A Conceituação Cognitiva é uma hipótese sobre pensamentos, suposições, emoções e crenças do paciente. Ela pode ser reformulada no decorrer da terapia, à medida que novas informações e evidências vão se reunindo.

Formulação da hipótese de Conceituação Cognitiva


Tentemos, através da analise da Figura I, entender como o terapeuta cognitivo constrói a hipótese da Conceituação Cognitiva.







As experiências de vida precoce podem influenciar o desenvolvimento de uma Crença Básica disfuncional. Imaginemos o seguinte exemplo: um paciente com diagnóstico de Uso Nocivo do Álcool e Episódio Depressivo relata, em sua história infantil, que o pai era extremamente crítico, desvalorizava o que ele fazia e o comparava com o irmão mais velho o tempo todo. O paciente, no plano inconsciente, começa a formular, através destas e outras experiências, uma hipótese sobre si mesmo (sua auto eficácia, sua condição de ser querido, etc.), formando os Esquemas. Essa avaliação sobre si mesmo, em palavras, compõe a Crença Básica. Por exemplo, constroem-se algumas crenças, tais como "não sei fazer nada certo", "meu pai não gosta de mim", "não sou uma pessoa querida". A partir da crença, o paciente faz algumas suposições. Por exemplo: "não sou querido porque não faço nada certo, logo, se eu me esforçar muito, eu conseguirei fazer algo bem feito e, se nunca errar, meu pai gostará de mim". Essas suposições influenciarão, inevitavelmente, o seu comportamento. Diante de situações específicas, essas crenças e suposições serão ativadas e ele desenvolverá padrões comportamentais denominados de Estratégias Compensatórias. As Estratégias Compensatórias visam aliviar a aflitiva Crença Básica. Diversas situações de vida podem ativar a mesma Crença Básica. Entretanto, para cada situação, o comportamento pode variar. Observemos o exemplo:

O paciente que apresentamos acima pode ser exposto a duas situações distintas. 

- Situação 1: após a aula, ele está deitado, sozinho, no seu quarto, refletindo sobre seu desempenho acadêmico. Ocorre-lhe, então, um pensamento automático: "sou o pior aluno". A este pensamento ele atribui um significado: "Eu sou incapaz". A emoção que decorre dessa cognição é tristeza e uma sensação vívida de fracasso. Então, ele decide parar de estudar. Observemos que, de forma genérica, a situação ativou um Esquema de Incapacidade que fora construído ao longo da vida do paciente, através de sua história infantil e experiências precoces. O Esquema influencia a formulação de pensamentos que sejam compatíveis com o seu conteúdo. Para um conteúdo de Incapacidade, o pensamento é "sou o pior". Este, por sua vez, influencia a emoção, que mantém coerência com o pensamento e Esquema. O paciente, então, sente-se triste e seu comportamento é abandonar a escola. Observemos que o comportamento "abandonar a escola" é uma Estratégia Compensatória de fuga para aliviar o Esquema de Incapacidade.


- Situação 2: Ao estudar um texto sobre gramática, o paciente acha o conteúdo difícil e percebe que precisa ler o texto outra vez e pensa: "vou perder a tarde por culpa deste professor que me exigiu estudar gramática" e "eu não sou inteligente o suficiente para aprender isso". A emoção evocada é irritação e tristeza. Ele fecha o livro e vai beber. Neste exemplo, a situação ativou Esquemas de Vulnerabilidade e Incapacidade. O comportamento de fechar o livro e beber foi uma Estratégia Compensatória que o auxiliará a lidar com os Esquemas ativados.
Observando a Figura II, notamos que, ao ter contato com a droga, o paciente desenvolve um outro grupo de crenças relacionadas à situação "usar droga". As crenças relacionadas à droga mantêm uma relação coerente com as Crenças Básicas de caráter mais genérico. Assim, o modelo cognitivo postula que a dependência é resultado da interação entre o contato inicial com a droga e as cognições que se formarão por influência das Crenças Básicas. Não são, portanto, todas as pessoas que, ao ter contato com a droga, desenvolverão dependência.



      As crenças relacionadas às drogas são de duas naturezas: 1) facilitadoras e 2) de expectativas positivas. O paciente, ao avaliar sua situação de estudante como muito árdua, começa a pensar que "merece" descontrair-se no bar durante o período da tarde; que beber "melhora o estresse"; e que vai ser "agradável a conversa com os amigos". Estas crenças são suficientes para eliciar pensamentos automáticos como "vou beber" e desencadear a fissura. Outras crenças, agora na vigência da fissura, aparecem: são Crenças Facilitadoras. Por exemplo, "não consigo suportar a vontade"; "só há um modo de melhorar essa vontade: usar!". Esse conjunto de cognições impulsiona o paciente ao uso, fechando um ciclo cognitivo para o uso continuado da droga. 

Créditos do texto acima

Revista Brasileira de Psiquiatria

Print version ISSN 1516-4446

Rev. Bras. Psiquiatr. vol.26  suppl.1 São Paulo May 2004

http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462004000500009 

 Bibliografia

1 - Serra AM. Apostila do Curso de Especialização em Terapia Cognitiva do Instituto de Terapia Cognitiva / Associação Brasileira de Psicoterapia Cognitiva (ABPC). São Paulo: ITC; 2004

2 - Beck AT, Rush AJ, Shaw BF, Emery G. Terapia Cognitiva da depressão. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997. 

3 - Blackburn IM. Depressão em pacientes hospitalizados. In: Scott J, William JMG, Beck AT, col. editors. Terapia Cognitiva na prática clínica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. p. 1-30.

4 - Beck JS. Terapia Cognitiva teoria e prática. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.

5 - Monti PM, Rohsenow DJ. Coping-Skills Training and Cue-Exposure Therapy in the Treatment of alcoholism. Alcohol Research & Health, 1999;(23):107-15.

6 - Daley CD, Marlatt AG. Relapse Prevention. In: Lowinson JH, Ruiz P, Millman RB, Langrod JG, editors. Sustance Abuse. A Comprehensive Textbook. 3rd ed. New York: Williams & Wilkins; 1997. p. 458-67

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